Factfulness

Os meus pais contaram-me que quando eu era criança – teria uns 7 ou 8 anos – acabei um jantar a chorar porque vimos na televisão uma reportagem sobre uma crise de fome na Etiópia, onde centenas de crianças morriam desnutridas, sendo que as imagens mostradas eram verdadeiramente devastadoras. Segundo eles, no seguimento desse episódio escrevi ao ex-Presidente da República Jorge Sampaio (que na altura exercia o cargo), a pedir que ajudássemos a Etiópia e as suas crianças, porque não era justa aquela diferença de recursos. Na minha mente infantil e livre de complicações, o problema era fácil de resolver: nós, que tínhamos em Portugal comida e bens para todos (pelo menos assim me parecia...), partilharíamos com quem não tinha nada. Simples assim. 

Eu não me lembro bem disto, nem de chorar à mesa, nem de escrever ao Presidente da República, nem sequer de ver, com aquela idade, o telejornal com os meus pais. 

Esta terá sido a primeira vez em que a desigualdade e a injustiça me indignaram. 

Escrevo-vos este texto no Dia Internacional do Enfermeiro. Um dia simbólico, bem sei, mas que me é querido porque sou enfermeira, naturalmente, e porque todos os anos neste dia dou por mim a pensar no que já vi, ouvi, cuidei, ri e chorei justamente por o ser. Estava longe de imaginar que a minha profissão me levaria a conhecer tantas histórias, e tão íntimas, da vida de milhares (já lá vão 9 anos!!) de pessoas de todas as idades, de todo o mundo, de múltiplas etnias, nacionalidades, culturas e religiões. Não sendo esse o objetivo primordial do meu trabalho, tem sido inquestionavelmente um dos maiores privilégios do mesmo. Endureceu a experiência, mas expandiu a curiosidade e os horizontes. Ser enfermeira levou-me a cantos do mundo que eu só conhecia de nome ou dos entristecedores relatos das tais reportagens do telejornal. 

Em Outubro de 2015, fui aceite para a minha primeira missão humanitária. Quando no Senegal senti, no lenço que me cobria a cabeça e os ombros de um sol abrasador, as lágrimas de alguém que chorava porque acabava de ser construida naquela tarde a primeira retrete da sua vida – que não era muito mais do que um buraco fundo no chão, coberto com ferro e cimento – eu também chorei. Chorei a alegria daquele homem com rugas sulcadas pela vida, misturada com a revolta que senti pela minha ignorância, inocência, ingenuidade e falta de empatia até ali. Chorei sozinha no colchão de espuma colocado em chão de poeira, onde me deitava, tudo o que eu não sabia ou não tinha querido saber até ali. 

No árido interior senegalês, conheci pela primeira vez pessoas e famílias que viviam um quotidiano chamado em ‘Factfulness’ de ‘Nível 1’. Aldeias onde o acesso a água potável para cada um dos seus habitantes requeria caminhadas longas até à fonte, caminhadas essas que sempre pareciam maiores ainda no regresso, porque se volta carregado com os bidões ou baldes cheios. Onde se caminhava descalço ou com chinelos gastos e reconstruídos múltiplas vezes, e onde famílias numerosas dormiam amontoadas numa só divisão, na qual também comiam e cozinhavam uma das duas ou três refeições diferentes que a terra lhes permitia. A população era maioritariamente jovem, porque se morria cedo, muitas vezes por causas que nem os familiares conheciam, e às vezes sem recurso a cuidados de saúde. 

Voltei a Londres, onde vivo, verdadeiramente destroçada, emergida num sentimento de total impotência, e quase derrotada pela certeza de que aquele era um cenário tendencialmente perpétuo para quem nascia nele. Quando alinhei as ideias, apesar de consciente de que não ia mudar o mundo, decidi que quando pudesse havia de tentar dar o meu contributo em sítios como aquele, onde o local mais próximo com acesso a cuidados de saúde estava a 3 horas de distância e era pago. 

Desenvolveu-se uma espécie de obsessão em aprender mais sobre tudo o que tinha visto no Senegal. O interesse não era pela pobreza ou miséria alheias – essas revoltaram-me – mas antes em aprender sobre estas diferenças entre países e pessoas, em percebê-las. Quando decidi voltar a estudar para estar mais preparada para trabalhar em contextos humanitários, tive uma sessão por Skype com um dos autores do Factfulness, Hans Rosling, na London School of Hygiene and Tropical Medicine (LSHTM). Na altura, não sabia quem este homem era, o que fazia ou o que estava a criar. Era apenas mais um professor a dar mais uma aula. Era sobre ‘matérias populacionais e a pobreza’, e naquele auditório cheio de gente fui brindada com um sem-número de factos como ‘apenas um quarto da população do mundo tem o mesmo acesso que eu, praticamente ‘ilimitado’, a bens básicos como a água, a eletricidade e a comida’, ou explicações de como a pobreza não era esse “saco” único onde a minha ignorância punha todos aqueles que não vivem como em Portugal ou no Reino Unido. 

Em 2018, trabalhei meio ano como enfermeira de urgência na Serra Leoa, um sítio onde a esperança média de vida é inferior aos 60 anos, onde se votava com o dedo porque mais de metade da população era analfabeta, e onde tinha visto morrer demasiadas pessoas apenas porque eram pobres. Morriam porque demoravam às vezes dias ou semanas a chegarem ao hospital mais próximo com a sua maleita. Caminhavam dias a fio, ou geravam o dinheiro para se transportarem ao longo do caminho através da venda de bens pessoais, ou alimentos, ou do seu póóprio corpo. Quando chegavam, a ‘maleita’ original já estava perto de ser catastrófica, e quantas vezes não chegaram mesmo tarde demais. Voltei a desmoralizar. Ficava difícil pensar no que aprendi na aula de “Matérias populacionais e pobreza”, quando tudo o que eu via eram sinais exteriores de pobreza e as suas consequências, tantas das vezes. 

Um dia, de novo em Londres, uma amiga sugeriu fazer aos demais um questionário do livro que andava a ler na altura ‘sobre o estado do mundo atual e algumas previsões do futuro’, que dizia ser ‘interessantíssimo’. Estávamos num almoço de amigos, mas aceitamos todos, ainda que com algum ceticismo. O questionário eram as 13 perguntas que os autores de Factfulness sugerem no início do livro. Três anos depois daquela aula na LSHTM, no meu cérebro em turbilhão, havia algo familiar naquele tipo de abordagem aos factos. E li este livro. Factfulness, não sendo um livro único quanto às temáticas que aborda, foi o primeiro que me explicou pela primeira vez de forma simples uma realidade complexa, sobre a qual eu não tinha antes refletido com atenção verdadeira e o enfoque certo. Eu era esse tipo de pessoa que os autores descrevem no livro, facilmente impressionável com um ou dois factos expostos de forma apelativa. Era também a pessimista que achava que o mundo não melhorava porque quem nascia na pobreza e na miséria que vi na Serra Leoa ou no Senegal, não saía dela. Assim, não sendo uma bíblia de conhecimento sobre os problemas do mundo, Factfulness foi um ponto de viragem para procurar mais, querer mais, questionar mais, ler mais e ouvir mais sobre tais problemas. Ter revisto a minha abordagem e a interpretação que faço da informação que consumo, a par da maturidade que os anos de profissão vão conferindo, levaram-me mais tarde a um campo de refugiados Rohingya no Bangladesh e ao Hospital Nacional de Simão Mendes na Guiné Bissau com outra segurança, menos ingenuidade, um coração mais preparado e uma mente mais aberta. 

O mundo não está perto de conceder a cada um dos seus habitantes uma vida digna e livre, onde são assegurados à partida os direitos contemplados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas saber o que foi feito e conquistado nos últimos 100 anos inspira-me a continuar, a não desistir, a não voltar a ser a Mónica que chorou de raiva e ignorância naquela noite senegalesa. 

24 de abril de 2021
Mónica Assunção

Cassandra

Cassandra é uma estrutura de criação artística.

É também o nome da mulher que Apolo amaldiçoou por ter recusado a sua sedução, tornando-a capaz de prever o futuro sem que nunca ninguém acreditasse nela.

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