Filhas da Maya

“A vida ama quem a vive”
Maya Angelou, in “Carta à minha Filha”

Comprei o livro com o pensamento na Laura, a filha que quero ver nascer de mim. Recomendo-o a pensar em todas as mulheres que, como a autora, Maya Angelou, amparam revoluções com as suas escolhas e com o seu colo. Mulheres que decidem viver em autenticidade consigo próprias, mesmo que isso implique romper com o papel que lhes foi socialmente atribuído. Mulheres como eu cresço para ser, mulheres como nós. 

Encontro-nos a todas entre os episódios narrados em “Carta à minha filha”, que leio como um testemunho de vida e um testamento de gratidão ao círculo de mulheres que deu sustentação aos 86 anos de história de Maya, falecida em 2014. 

Também reconheço esse poder feminino em cada intervenção, escrita ou verbalizada, com que me cruzo neste Heróides.

Ouço de uma delas: “Este não é um livro de auto-ajuda, mas é um livro que ajuda”. 

“O momento em que nos sentimos mais seguros é quando entramos em nós próprios”

Enquanto me detenho nessa e noutras leituras, que amplificam a minha própria, releio as palavras impressas na capa, e dou por confirmada a expectativa ali criada. “Carta à minha filha” não só cumpre a promessa como vai além dela: mais do que “um legado inspirador para todas as mulheres que amam, sofrem e lutam pela vida”, é um património de humanidade que extravasa géneros. Ao encontro do nosso “eu” mais íntimo, em comunhão com o nosso “eu” público, num equilíbrio nem sempre fácil e muitas vezes frágil.

“Estou convencida de que a maioria das pessoas não cresce. Arranjamos lugar para estacionar o carro e pagamos os cartões de crédito. Casamos e atrevemo-nos a ter filhos e chamamos a isso crescer. Acho que o que fazemos é sobretudo envelhecer”, assinala Maya, no primeiro dos 28 textos que compõem a obra.

Na mesma passagem do livro, a escritora americana diz acreditar “que o momento em que nos sentimos mais seguros é quando entramos em nós próprios e encontramos a nossa casa, o sítio a que pertencemos, talvez o único sítio a que realmente pertencemos”.

Transporto o pensamento para o espaço da conversa que, no último sábado de Maio, me juntou a centenas de pessoas neste clube do livro feminista, e encontro um lugar privilegiado de acesso a esse estado de segurança. 

Percebo-o na minha identificação com as confidências trocadas – incluindo os crónicos conflitos entre quem somos e quem achamos que devemos ser –, comprovo-o nas lágrimas de afinidade com dores de perdas humanas, perdão e reconciliação, e em tantas e tantas tomadas de consciência que só posso constatar que Heróides também é a minha casa.

Cocktail de desespero, impotência, revolta e frustração

Neste território de letras singularmente pluralizadas, reconheço um pouco de mim em cada voz, à medida que reflicto sobre a negritude que partilho com a Maya, e que fortalece a minha ligação a “Carta à minha filha”.

A primeira experiência que me assalta os pensamentos é a ida de Maya a uma clínica psiquiátrica, já num estado acentuado de adoecimento mental.

“Sentei-me, olhei para ele e comecei a chorar. Como é que aquele homem branco, privilegiado, ia perceber o que se passava no coração de uma mulher negra, atormentada pela culpa de ter deixado o filho entregue ao cuidado de outras pessoas?”.

Revejo neste episódio o cocktail de desespero, impotência, revolta e frustração que tem acompanhado o meu confronto com o Portugal estruturalmente racista em que vivemos. Penso na incompreensão, desvalorização e negação das denúncias de discriminação racial. Pelo caminho, reforço o meu compromisso em defesa da igualdade e equidade, e encontro colo na sabedoria de Maya: “Onde quer que escolhamos viver, iremos sempre encontrar ignorância”.

Resta saber o que decidiremos fazer em relação a isso. Eu escolho combatê-la com a minha e nossa humanidade, consciente de que somos todas filhas da Maya. Não nascemos dela, mas crescemos com ela, numa literária gestação de afectos.

29 de maio de 2021
Paula Cardoso

Cassandra

Cassandra é uma estrutura de criação artística.

É também o nome da mulher que Apolo amaldiçoou por ter recusado a sua sedução, tornando-a capaz de prever o futuro sem que nunca ninguém acreditasse nela.

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